O Barbeiro de Selvíria: um romance que resgata vidas, lugares e tempos guardados na memória afetiva
Há obras literárias que nascem de grandes acontecimentos, e outras que surgem de pequenas fagulhas aparentemente ordinárias. O Barbeiro de Selvíria pertence a esta segunda linhagem: a das obras que se constroem a partir do detalhe, da memória, da lembrança guardada num objeto comum que, após décadas, revela profundidade e significado. Foi a partir de uma fotografia antiga, encontrada pelo autor Paulo Sérgio Rosseto, que se iniciou o processo que daria origem a este romance íntimo, poético e profundamente humano. Nela estava inscrita, à mão, uma frase simples e poderosa: “Rio Paraná, 1967”. Uma frase capaz de abrir todo um universo.

Rosseto parte dessa imagem material para desenvolver uma narrativa que interliga passado e presente, ficção e realidade, e que resgata a trajetória de uma família real em um Brasil de profundas transformações sociais, econômicas e culturais. Mais do que recontar fatos, o autor revisita raízes, interpreta gestos, recria atmosferas e restitui vidas à memória. O resultado é um romance maduro, construído com sensibilidade, rigor emocional e elegância literária.
Ambientado no final dos anos 1960, em plena reorganização geográfica das fronteiras do Centro-Oeste, O Barbeiro de Selvíria acompanha a jornada da família de João Marconetti rumo a Selvíria. O projeto narrativo do autor vai além da descrição dos acontecimentos: ele transforma um deslocamento familiar em epopeia silenciosa, revestida de humanidade e significado profundo. João, figura central do romance, é apresentado não como um herói tradicional, mas como um símbolo da força cotidiana do homem comum. Em seu ofício de barbeiro, e em seu papel de pai, esposo e provedor, ele assume uma grandeza que nasce do silêncio, da persistência e do trabalho.
A paisagem é componente essencial da obra. Rosseto demonstra habilidade singular em transformá-la em elemento narrativo orgânico. O Rio Paraná surge como presença constante, quase espiritual, marcando encontros, despedidas e destinos. A travessia de barco, o calor opressivo, as estradas longas e poeirentas do interior brasileiro e as pequenas cidades que compõem a região não são meros cenários, mas forças vivas que moldam as pessoas e os tempos. A natureza, na escrita de Rosseto, tem corpo, voz e memória.
A narrativa se desenvolve em ritmo contemplativo, respeitando o tempo da memória e da afetividade. Os capítulos equilibram fluidez e profundidade, e mostram uma maturidade narrativa que só pode ser fruto de longa experiência literária do autor, também reconhecido como poeta. Isso se traduz na delicadeza da linguagem, na escolha precisa das palavras e na capacidade de criar imagens literárias que permanecem com o leitor muito após o fim da leitura.

Ao mesmo tempo, o romance recupera aspectos socioculturais da época que ajudam a compreender o contexto de tantas famílias brasileiras que, naquele período, migravam em busca de oportunidades, terra, trabalho e dignidade. A obra funciona como registro histórico sensível e, simultaneamente, como reconstrução poética de um Brasil interiorano pouco visível na literatura contemporânea. Rosseto ilumina vidas que, na maioria das vezes, permanecem fora dos grandes relatos oficiais, mas que ergueram o país com suor, esperança e coragem.
Outro elemento fundamental da obra é a memória afetiva: ela não é apenas tema, mas método. Rosseto revisita fatos com a maturidade de quem compreende que recordar não é copiar o que já aconteceu, mas reinterpretar o vivido à luz do que se tornou. O passado, no romance, não é estático. Ele continua vivo, respirando, pulsando e transformando-se no presente. Essa postura confere à obra um caráter quase ritualístico: lembrar aqui se torna um gesto de amor e preservação.
Do ponto de vista estilístico, O Barbeiro de Selvíria equilibra cuidadosamente lirismo e objetividade. Há momentos em que a prosa se aproxima da poesia e entrega ao leitor imagens carregadas de emoção, silêncio e profundidade. Em outros, a narrativa assume caráter direto, transparente, guiando o leitor com clareza pelas linhas centrais da história. Essa alternância habilidosa cria ritmo e textura narrativa.
Não há pressa nas páginas do livro. E talvez seja justamente essa ausência de urgência que permita que o leitor mergulhe totalmente nas atmosferas criadas pelo autor. O romance convida a uma leitura atenta, sensível, aberta à introspecção e à identificação. Muitos leitores, de diferentes origens e gerações, encontrarão na história de João Marconetti reflexos de suas próprias famílias, avós, pais ou tios que também enfrentaram suas travessias particulares.
Ao final, o livro oferece mais do que uma história: oferece reconciliação com o passado, reconhecimento dos antepassados, valorização da identidade e retorno simbólico ao lugar de origem. O Barbeiro de Selvíria é, acima de tudo, uma celebração da memória – individual e coletiva.
Uma obra que honra o tempo, a terra, o silêncio e a trajetória daqueles que vieram antes de nós.
- Livro: O Barbeiro de Selvíria
- Autor Paulo Sérgio Rosseto
- Editora: Clube de Autores Amazon Brasil
- Número de páginas: 202 páginas
- Valor aproximado:
- Impresso: R$ 55,20
- Ebook: R$ 21,56
Rod Pereira
Dramaturgo, consultor de marketing, membro da Academia de Letras de Porto Seguro, cronista e provocador de ideias. “Meu texto é farpa e abraço, caos e poesia.Sempre com uma boa dose de ironia e humanidade”